terça-feira, 27 de julho de 2010

Mais um dia por vir.

O barulho do despertador enche o quarto de desespero e pressa. Enche seu corpo de má vontade, de cansaço antecipado. Os lençóis enrugados são convidativos, querem que fique por mais seis horas lhes fazendo companhia. A parede vermelha-cereja tenta, em vão, prender seus cabelos. O edredom esquenta o peito desnudo que logo sente frio ao se sentir desprotegido. Porém, a coragem e a necessidade falam mais alto e os chinelos, que antes estavam à espera dos pés brancos e chatos, nem muitos grandes nem miúdos demais, tomam vida e balbuciam um barulho arrastado até o banheiro. Enfim, em pé.
Longo, o dia acorda com comida semi-aprontada no dia anterior e esquentada no micro-ondas. Liga a televisão para ter aonde olhar. Esportes. Futebol. O Tricolor perdeu mais outra, talvez se guardando para a batalha campal de meio de semana, que fará sangrar o oponente até que este queira nunca ter sido chamado de colorado, pois o será ainda mais. Mas colorado pelo sangue que será derramado dos corações tristes de seus adoradores, coitados. O quase-almoço fica todo pronto. Senta-se na sala em frente à televisão, em cima do tapete azul-turquesa. Momento que beira o oriental. Ele quase come tudo o que colocou no prato raso de vidro amarronzado, mas não consegue. Deixa.
Tira as poucas roupas que ainda lhe restam da noite anterior no desejo e na necessidade de que desçam pelo ralo os resíduos que seu corpo produziu ao longo da noite. O cheiro bom do sabonete e do shampoo tomam conta do banheiro esfumaçado e quente e úmido. A toalha, ao esfregar-se contra seu corpo, adquire o mesmo odor prazeroso e umedece. Logo em seguida, ela abraça sua cintura enquanto ele escova seus dentes, coisa não muito caprichada, já com pressa. A camiseta vermelha é vestida, indicando a mudança de personalidade, de responsabilidade e de conduta de vida. Agora ele é outra pessoa. A mesma, talvez, mas diferente de antes. A cueca e as calças jeans vestidas e as meias e os tênis calçados mostram que está na hora. Coloca a carteira, o celular e aquele aparelho que comprou no final de semana anterior em diferentes bolsos e a mochila nas costas. Abre a porta. Ao trancá-la, vira a chave somente uma vez, pois ouviu um dia que assim é mais seguro que duas voltas. No começo, era por isso, agora não passa de um hábito. Tem dado certo, por que mudar? Sai.
Espera o elevador. Entra e se depara com a mesma imagem de quando escovava os dentes, mas agora sua boca não mais espuma e a camiseta vermelha agora compete atenção com a luz clara e vence. A preocupação é com os cabelos, que insistem em não repousar no lugar de sua preferência. Esboça um descontentamento, não que alguém pudesse ver e fazer alguma coisa, mas para expressar para si mesmo que a insatisfação tomou conta. Coisa boba; desiste.
O aparelho do bolso é retirado e, ligado, produz canções que o fazem bem. Oras provocam estado de euforia, oras de calmaria. Oras de furor, oras de paz. Oras de tristeza, oras de alegria, felicidade. Não se ouve mais o barulho do elevador descendo, passando pelos andares e parando no piso desejado. O que se ouve é apenas a música escolhida para aquele punhado de minutos que ditarão o humor do dia inteiro. A música ensolarada se mistura com o dia barulhento de frases sincronizadas ou não. A manhã, enfim, transforma-se em tarde. A viagem, a descida, a viagem, a descida, a viagem e a descida indicam a luta e o amor por fazer o que gosta e lhe dá prazer. Aquela música fez sentido, agora. O despertador, por fim, estava certo ao acordá-lo. Valeria a pena. O dia, enfim, começa.



Trilha Sonora: Mallu Magalhães - Mallu Magalhães (2009).

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